A sociedade punitiva

 Entre janeiro e março de 1973, Foucault apresenta o curso A sociedade punitiva [La societé punitive, Cours au Collège de France, 1972-1973. Gallimard, 2013], parte do conjunto de análises que servirão de base ao livro Vigiar e Punir, de 1975. Finalmente publicado em 2013, as gravações do curso foram perdidas, e apenas uma transcrição conservada, além do resumo redigido pelo autor. Uma novidade do curso é não tratar da denúncia da exclusão e da intolerância social, em favor dos que vivem à margem. A análise da prisão supõe justamente uma distância crítica das noções de transgressão e exclusão – mesmo que estas fossem úteis para indicar que os “anormais” ou “desviantes” foram primeiro rejeitados e só depois assim nomeados. Não prevaleceria mais a abordagem, presente em História da Loucura, que descrevia o processo de rejeição da loucura pela razão ocidental, prolongado no conhecimento psiquiátrico, ambos apoiados na exclusão (a grande internação). 

Em 1973 a prisão não aparecerá como instrumento de exclusão dos desviantes e rejeição de populações indesejáveis. A prisão moderna integraria e purificaria estratégias sociais do poder, e mais do que eliminar a contestação, redistribuiria os fluxos de população: punição do comportamento irregular, mais do que punição da infração a uma lei – não o ócio como vício, ou a mendicância como desvalorização do trabalho, mas a vagabundagem (nomadismo social) como ethos. Inspirado em clássicos da historiografia sobre o movimento operário , o curso parte da emergência do capitalismo industrial e da generalização da propriedade agrária. Nesse processo, a prisão teria sua função nas relações sociais – gestão dos ilegalismos, como o roubo e depredação; mas também seria símbolo dessas relações – o domínio do coercitivo. 

É o que torna possível afirmar a identidade das várias instituições modeladas pela reclusão, vigilância ininterrupta, exame regular, organização do emprego do tempo, produção de um saber normativo sobre os indivíduos etc. Identidade, mais que analogia, pois é o mesmo tipo de poder, a mesma estratégia, ainda que variem os fins: [poder que] não serve às mesmas finalidades econômicas, quando se trata de fabricar escolares, ou de “fazer” um deliquente, isto é, constituir esse personagem definitivamente inassimilável que é o tipo que sai da prisão. 

Enfim, trata-se da utilidade da prisão, que encarna um projeto utópico: a “penitência” inserida no sistema penal pela moralização da criminalidade e pela punição garante sua aceitação, e não aparenta um abuso de poder, dada a sua semelhança com outras instituições socialmente aceitas – e vem daí seu privilégio na análise, quando todas as outras instituições apresentam algo de cárcere. 

O curso promove o encontro entre a Genealogia da moral de Nietzsche e o Capital de Marx, ao oferecer um primeiro esboço do regime de verdade associado à forma jurídica e política do confinamento generalizado, sublinhando sua centralidade na sociedade contemporânea: mais do que a prisão em si mesma, trata-se de uma “forma-prisão” que é “muito mais do que uma forma arquitetural, é uma forma social”. Forma social por envolver também a “forma-salário”, gêmea de nascimento da outra – pois a gestão política do tempo e do ritmo de vida dos indivíduos promove a forma abstrata do tempo como princípio de medida do aparato penal e do aparelho de produção. 

Esse percurso sugere que Vigiar e Punir, publicado em 1975, seria um estudo de caso da forma jurídica do exame no século XIX, como produção de uma verdade científica e jurídica do sujeito na sociedade industrial, tal como anunciado no curso de 1971-1972, ainda inédito, Teoria das instituições penais. E a questão em Vigiar e Punir não seria mais a predominância de uma instituição (o panóptico), nem de um tipo de poder (disciplinar), mas a produção de uma verdade e de um saber através de toda a sociedade – o que solicita uma nova leitura de Vigiar e Punir em continuidade com o problema da verdade , por exemplo...

Além desses aspectos, o curso contribui para esclarecer (ou ampliar o enigma) das complexas relações entre Foucault e o “marxismo”, o pensamento de Marx, e as formações teóricas e práticas políticas que o reivindicam. [ ementa ]